Reconhecimento facial erra gênero de pessoa trans

Pessoas trans querem mostrar que existem para empresas que usam reconhecimento facial como chave de acesso. A biometria do rosto teria precisão maior do que 95%, segundo fornecedoras da solução, mas para quem é transgênero a taxa de acerto cai para menos de 60%.

A falha ocorre porque o algoritmo de identificação se baseia em medidas da face, como distância entre os olhos ou entre o nariz e o lábio superior e pode confundir o gênero da pessoa identificada.

As chances de erro ficam ainda maiores durante o tratamento hormonal para transição de gênero, principalmente masculina, em que o rosto pode ganhar pelos e a linha do cabelo pode mudar.

O estudante Ariel Viktor Freitas, 23, por exemplo, teve problemas para acessar sua conta no Nubank, após um ano e meio de tratamento hormonal. “Estou tendo problemas porque minha cara mudou”, escreveu no Twitter.

Ele tentou resolver o problema três vezes no chat disponível no aplicativo e não teve sucesso. Na terceira, recomendaram ligar para o banco. A central telefônica o instruiu a enviar um email.

Depois disso, o Nubank disponibilizou uma opção e permitiu que o jovem acessasse o aplicativo ao enviar uma foto com a identidade. Freitas diz que enfrenta o mesmo problema com o Banco Pan há meses e não teve solução.

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À Folha o Nubank diz que, caso haja algum desafio de identificação de legitimidade, conta com procedimentos internos “em constante aprimoramento”, que mesclam tecnologia e trabalho humano com equipes treinadas, para confirmar que a solicitação é legítima e evitar contratempos para o cliente.

O banco Pan afirma que o processo de cadastro de seus clientes envolve o envio de ao menos um documento com foto.

“Clientes em transição de gênero ou alteração de nome social podem solicitar a atualização desses dados inclusive para fins de biometria”, diz o banco.

O projeto “Eu Existo” busca conscientizar empresas sobre o entrave que o reconhecimento facial impõe à população transgênero no Brasil, sobre a qual não há dados oficiais levantados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Tecnologias de análise facial erram o gênero de uma pessoa trans em até 40% das vezes, mostra estudo da Universidade do Colorado, de 2019. Os testes foram feitos com 2.450 imagens coletadas no Instagram.

Os modelos, segundo o estudo, eram completamente incapazes de reconhecer gêneros não binários.

Revisão bibliográfica deste ano da professora Katja Thieme, da Universidade de British Columbia, no Canadá, mostra que pouco mudou desde então.

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Os modelos de inteligência artificial como os usados no reconhecimento facial são meras ferramentas estatísticas. Por isso, pesquisadores ouvidos pela Folha dizem que o primeiro passo para resolver o problema é convencer as empresas que adotam a tecnologia de que elas dão espaço para um comportamento discriminatório.

“Uma vez que o processo de retificação do comportamento da IA é caro e difícil, as empresas não vão passar por isso sem serem pressionadas”, afirma o designer de redes neurais argentino Marcelo Rinesi, que trabalhou em testes da criadora do ChatGPT, OpenAI.

A ONG Casarão, em parceria com a agência Publicis e a comunidade Egalitrans, lançou um app para tentar solucionar o problema, que reproduz a transfobia presente na sociedade, na avaliação de Yonara Oliveira, líder do projeto “Eu Existo”.

Trata-se de uma API —uma espécie de bloco de código que pode ser acrescentado a outros programas ou sistemas— especializada em reconhecer pessoas trans. As empresas interessadas podem integrá-la às suas próprias tecnologias de reconhecimento facial.

“A gente mostra o problema, o caminho e a solução para nos tirar da invisibilidade, por meio da tecnologia”, diz Oliveira.

A campanha “Eu Existo” ainda colhe imagens de pessoas transgênero, por meio deste link, para treinar o modelo de inteligência artificial e melhorar a precisão do próprio recurso de reconhecimento facial.

As fotos coletadas são usadas para treinar o modelo de inteligência artificial e depois apagadas.

“O projeto atrasou alguns meses por essa preocupação de estar tudo em conformidade com a LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados]”, diz Jairo Anderson, diretor de Criação da agência Publicis.

“Precisamos chegar a mais de 90% de precisão para conseguirmos fechar parcerias com as empresas”, diz Anderson. Essa faixa de certeza é um padrão mínimo para adoção no mercado —o ideal é ficar acima dos 95%.

QUANDO O RECONHECIMENTO FACIAL NÃO BATE COM O DOCUMENTO

O programador Noah Scheffel, 31, não consegue nem sequer criar contas digitais em bancos, barrado pelo crivo do reconhecimento facial.

O algoritmo o identifica como homem, mas seu documento continua com seu antigo nome. Essa incompatibilidade trava o sistema, que costuma pedir uma foto do documento.

O problema tem dois lados: a troca de nome junto à burocracia ou a limitação de algoritmos de reconhecimento facial aos padrões de gêneros tradicionais.

No caso de Scheffel, a troca de nome tem um empecilho além dos gastos no cartório: ele tem duas filhas e precisaria registrar novas certidões de nascimento das crianças e atualizar toda a documentação delas.

“Eu teria de passar por toda essa jornada adicional só por ser uma pessoa trans”, diz Scheffel. O programador defende que a solução por meio da tecnologia, com a API do projeto “Eu Existo”, transcende o problema individual dele e visa retirar esse obstáculo para todo o público transgênero.

“O aprendizado de máquina considera a questão da barba, do cabelo e associa com uma noção registrada de gênero, nós não precisamos estar dentro desta caixa”, afirma.

FOTO ANTIGA NO SISTEMA DA JUSTIÇA ELEITORAL GERA PROBLEMAS NO GOV.BR

O jornalista Caê Vatiero, 25, relata problemas com o serviço do governo —o Gov.br. Depois da transição de gênero, o reconhecimento facial necessário para receber o padrão ouro no aplicativo deixou de funcionar.

A tecnologia do governo usa como base retratos da base da Justiça Eleitoral. No caso de Vatiero, a foto é antiga, por isso, a incompatibilidade.

O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos diz que oferece alternativas de acesso a quem tem problemas com o reconhecimento facial, como a autenticação pelo QR Code da nova Carteira Nacional de Identidade.

Também é possível atualizar a foto junto à Justiça Eleitoral ou fazer um certificado digital. O ministério acrescenta que é possível conseguir padrão prata com o reconhecimento facial baseado na foto da carteira de motorista.

Vatiero acessou o chat do aplicativo Gov.br e foi instruído a procurar um totem de autoatendimento, que funciona em horário comercial, para atualizar a sua foto. Como vive em São Paulo, o jornalista teria de ir até a Sé para realizar o procedimento, o que ainda não teve tempo para fazer.

Nos Estados Unidos, uma diretriz do Nist (Instituto Nacional de Normas e Tecnologias, em tradução livre) recomenda que as empresas que usam reconhecimento facial ofereçam alternativas à identificação do rosto para diferenciar gêmeos idênticos. O texto não é normativo, vale apenas como instrução.

No Brasil, o uso de reconhecimento facial não está regulamentado, o que pode mudar caso o marco regulatório da inteligência artificial, em tramitação no Senado, seja aprovado.

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