Brasil teve 12 fenômenos climáticos extremos em 2023

Nos últimos anos, o tempo verbal em relatórios, pesquisas e matérias jornalísticas que tratam sobre as mudanças climáticas passou do futuro para o presente. Os desastres naturais cada vez mais frequentes mostram que os impactos provocados pela exploração desordenada dos recursos do planeta já cobram seu preço. E o Brasil coleciona tragédias que evidenciam a urgência do tema.

Um exemplo dramático são as tempestades e as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul nos últimos dias. Na última quarta-feira (8/5), a Organização Meteorológica Mundial (OMM) divulgou um relatório que elenca 12 eventos climáticos extremos no país em 2023. A análise de especialistas leva a crer que não se trata de um retrato de um ano atípico, mas de uma nova realidade a qual o mundo deve se acostumar, ainda que a duras penas: a era dos extremos.

O relatório para América Latina e Caribe da OMM, agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU), aponta que o Brasil teve cinco ondas de calor, três chuvas intensas, uma onda de frio, uma inundação, uma seca e um ciclone extratropical. Também pela extensão continental do país, os eventos dão a dimensão de que a prevenção e os reparos necessários para mitigar os efeitos dos fenômenos extremos são complexos. Há necessidade de buscar soluções para questões antagônicas: secas e enchentes, frio e calor além do habitual.

No relatório, a OMM destaca as ondas de calor que atingiram os principais centros urbanos no Sudeste do país no segundo semestre e também as altas temperaturas que provocaram estragos na Amazônia. Em julho do ano passado, a floresta tropical registrou uma das piores secas de sua história. Como reflexo da situação, em outubro, o nível do Rio Negro caiu para 12,7 metros, o mais baixo desde que observações do tipo começaram a ser feitas, em 1902. Ainda na Amazônia, as altas temperaturas provocaram eventos como a morte de mais de 150 botos cor-de-rosa no Lago Tefé, sob calor recorde de 39,1 graus Celsius. Foram cerca de 22 mil focos de incêndio na Floresta Amazônica em outubro, recorde para o mês desde 2008.

O ciclone extratropical apontado no relatório foi uma prévia das históricas chuvas que hoje deixam o Rio Grande do Sul submerso. No ano passado, tempestades com fortes rajadas de vento afetaram 340 mil gaúchos e provocaram 46 mortes, segundo a Defesa Civil do estado. As enchentes dos últimos dias estão ainda mais destrutivas, com o número de óbitos superando uma centena.

Diante do cenário de caos no Sul, o poder público se movimenta para debater o assunto no calor do momento e com décadas de atraso. Neste contexto, a Câmara dos Deputados recebeu, nesta semana, a diretora-adjunta de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Gabriela Savian. Ela enfatizou que “atípicos” pode não ser mais um adjetivo cabível para descrever fenômenos como os que hoje destroem o Rio Grande do Sul.

“Infelizmente, eventos extremos como estes serão cada vez mais recorrentes e exigem medidas urgentes de combate ao aquecimento global. As chuvas já afetaram rios de todo o estado, impactando milhares de pessoas. O desmatamento deve ser controlado e a ciência deve ser levada em consideração para a tomada de decisão nos planos de ação emergenciais decorrentes da urgência no atendimento da catástrofe do Rio Grande do Sul e demais estados, como o que vimos recentemente nos estados da Amazônia”, afirmou a pesquisadora em entrevista.

Inundação e mortes

Em janeiro de 2022, pontos da Grande BH registraram mais de 200 milímetros de chuva em 24 horas. Tempestades causaram a morte de ao menos 15 pessoas em Minas e deixaram cidades inteiras debaixo d’água. O evento foi destacado pela OMM em seu relatório climático para América do Sul eCaribe do ano passado. Dois anos antes, temporais causaram grandes estragos em Belo Horizonte. Nada leva a crer que tardarão em acontecer novamente e, menos ainda, que chegarão em absoluta surpresa.

Para a professora do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG, Juliana Luquez, é necessário ressaltar que autoridades não têm mais a seu favor o argumento de que eventos extremos pegaram as administrações públicas desprevenidas. “É importante que se diga que os eventos extremos não são mais uma novidade do ponto de vista do fenômeno. É até muito preocupante quando agentes e gestores públicos se dizem surpreendidos com a tragédia. No Brasil, especialmente a partir de 2012, houve um tratamento muito mais contundente tanto do ponto de vista institucional como do ponto de vista legal”, avalia.

“Uma estrutura altamente tecnológica foi montada a partir de então para que se fizesse um monitoramento e a comunicação do comportamento das áreas de risco, especialmente em todo o Brasil. O grande desafio no contexto nacional está especialmente na capacidade adaptativa dos diferentes municípios. Principalmente naqueles em que possuem realidades não só ambientais como socioespaciais muito distintas”, completa a pesquisadora.

Também professor do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG e pesquisador do Observatório das Metrópoles, Rogério Palhares amplia a discussão ao destacar que, embora capazes de prever a chegada de eventos extremos, as cidades brasileiras não têm estrutura para conter os danos associados a fenômenos do tipo.

“O nível de preparação do país para lidar com essa nova realidade está muito próximo da estaca zero. E pior, além de, em geral, mantermos os mesmos padrões predatórios de atividade econômica (mineração, garimpo, monocultura e pecuária para exportação) e urbanização em escala e práticas insustentáveis, continuamos negando ou menosprezando a magnitude da crise climática, por exemplo, flexibilizando a legislação ambiental para facilitar desmatamentos, o extrativismo e a expansão urbana sem qualquer cuidado com o meio ambiente”, afirma.

O pesquisador destaca que a situação atual do país preocupa não só pela inexistência de infraestrutura capaz de assegurar a segurança dos cidadãos contra eventos climáticos extremos. O problema é progressivamente agravado diante de comportamentos do poder público, que foca sua atuação em medidas paliativas, enquanto mantêm um comportamento predatório do meio ambiente.

Ao citar intervenções de prevenção comumente realizadas nos centros urbanos do país, Palhares destaca que a contenção de danos é a regra geral, enquanto trabalhos de proteção e precaução ficam em segundo plano. O professor também recorda que, em que pese o fato de que os fenômenos naturais não reconheçam as limitações geográficas dos municípios, há no país uma carência de programas metropolitanos para ações de cooperação.

“Em geral, quando há ações, estão correndo atrás do prejuízo, como é o caso das bacias de detenção, piscinões, diques e barragens que, na melhor das hipóteses, podem mitigar maiores danos. Estratégias de prevenção exigem adaptações profundas no modo de construir, mantendo mais áreas permeáveis nos lotes, não ocupando as várzeas, criando mais áreas verdes, adotando dispositivos de armazenamento e infiltração da água de chuva, além de sistemas de monitoramento e alerta de grande capacidade de mobilização comunitária. Estamos muito longe disso. Só para se ter uma ideia, os eventos climáticos não respeitam limites municipais e não há estratégias metropolitanas de prevenção e gestão de risco”, pontua.

Ainda que a recorrência de eventos climáticos extremos se dê de forma contemporânea, entender como impactam a população brasileira exige revisitar como o processo de urbanização do Brasil fez com que os impactos para a população fossem ampliados. Especialistas analisam as tragédias como um fenômeno intrínseco às principais cidades do país por causa de seu processo de formação e crescimento.

A corrida do campo para as cidades no Brasil começou a se acentuar a partir dos anos 1960. À época, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 55% dos brasileiros viviam em áreas rurais. Duas décadas depois, 66% do país estavam concentrados em áreas urbanas. Este percentual supera os 80% desde os anos 2000. Segundo o Censo Demográfico de 2020, 120 dos 203 milhões de habitantes do país residem em arranjos populacionais ou municípios isolados com mais de 100 mil habitantes.

Rogério Palhares aponta características comuns do processo de urbanização em diferentes pontos do Brasil e destaca a falta de cuidado das ocupações em relação aos recursos hídricos ao citar o exemplo da situação atual no Rio Grande do Sul. “Nossos padrões de urbanização, mesmo os mais formais, providos pelo mercado imobiliário, desprezam a relação com a natureza, o ciclo hidrológico, a necessidade de equilíbrio entre espaços construídos e áreas livres, verdes”, alerta.

“Já as populações pobres são condenadas a ocupar as áreas mais impróprias como encostas íngremes e áreas sujeitas a inundações, sem infraestrutura, autoconstruídas, as chamadas áreas de risco. Eventos extremos como o que atinge atualmente o Rio Grande do Sul, atinge a todos, mas são os mais vulneráveis, os mais pobres, os que sofrem os maiores impactos e têm piores condições de se reerguer”, analisa Palhares.

“O que acontece nas baixadas tem a ver com o descuido na ocupação de toda a bacia, das cabeceiras, às encostas e aos fundos de vale, onde, aí sim, pode ser tarde demais para evitar o pior”, completa o professor da UFMG.

Para a professora Juliana Luquez, entender como ocorreu a formação das cidades brasileiras é um passo essencial para entender também como os eventos climáticos extremos afetam os cidadãos de forma diferente. A especialista associa a distribuição espacial que relega pontos críticos dos espaços urbanos às classes vulneráveis como mais um fator que acrescenta elementos dificultadores à vida dos mais pobres nos centros urbanos brasileiros.

“A compreensão do processo de urbanização no Brasil é fundamental para que a gente entenda não só os eventos extremos como fenômenos, mas especialmente como fenômenos urbanos. É imprescindível que a gente reconheça que o melhor plano de contingência, o mais eficiente protocolo de evacuação e retorno ao território não pode ser considerado sem que se qualifique o debate sobre o processo de urbanização do Brasil”, diz.

“Considerando que a urbanização brasileira realiza também processos de periferização, espoliação e segregação, é importantíssimo que se diga que determinados grupos já sentem há décadas, devido ao padrão de ocupação na cidade, os efeitos dos impactos ambientais”, conclui a professora.

EVENTOS EXTREMOS EM 2023

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