Neste momento, está em tramitação no Senado Federal o PL 1.958 de 2021, de autoria do senador Paulo Paim, que propõe a reserva de vagas para negros (pessoas autodeclaradas pretos e pardos, segundo categorias do IBGE) nos concursos públicos da administração federal e das instituições controladas pela União. Tal projeto vem sendo alvo de críticas sob o argumento de que as políticas de enfrentamento às desigualdades deveriam ser balizadas pelo critério social (de renda) e não étnico-racial.
O PL 1.958 é uma renovação da Lei 12.290 de 2014, que vence em junho próximo. Houve melhoria na versão atual, e espera-se que o Congresso Nacional seja fiel à longa experiência brasileira em políticas de cunho racial, em que as pessoas brancas foram as grandes beneficiárias.
A primeira delas, o Decreto 528 de 1890, sancionado pelo Marechal Deodoro da Fonseca ainda no governo provisório da República, discorre em 43 artigos sobre a introdução e a localização dos imigrantes. O documento previa destinação de recursos e apresentava um desenho estratégico para potencializar as etnias europeias que aportavam no país naquele momento, definindo para quem se destinava o progresso.
Essa antiga experiência nacional completa com chave de ouro a sua intenção quando o presidente Hermes da Fonseca sancionou o Decreto 9.081, em 1911, que regulamentou o “Serviço de Povoamento”, como foi chamada a estratégia de instalação das etnias européias no Brasil. Esse decreto é um modelo de integração e desenvolvimento de populações inteiras — nesse caso, para os imigrantes europeus no Atlântico Sul. A peça jurídica tinha 26 seções e 277 artigos — superior à Constituição Federal de 1988 — e incluía benefícios como passagens de ida e volta aos países de origem para aqueles que já estivessem estabelecidos como proprietários rurais.
Nunca se bradou por políticas sociais contra todas essas políticas raciais exclusivas para beneficiar os europeus. Fosse assim, os negros e os povos originários que aqui já estavam seriam incluídos. Mas, ao contrário, esses dois segmentos populacionais foram abandonados à própria sorte.
As críticas em relação às políticas de cunho racial e os argumentos em favor das políticas sociais, ditas universais, podem ser interpretados sob vários aspectos, que vão desde o analfabetismo histórico, passando pelo racismo ou até mesmo má-fé para proteger privilégios.
Alguns críticos das ações afirmativas raciais ainda se apóiam na crença distorcida de que essas seriam uma expressão de “racismo reverso”, conceito que não existe na medida em que o racismo se sustenta por lugares de poder concentrados nas mãos de determinados grupos em detrimento de outros, e não em ações que buscam o equilíbrio social, com acesso às mesmas oportunidades e direitos sociais.
Para reverter a anomia racial na qual o Brasil sempre esteve imerso, requer-se políticas públicas específicas. Algumas dessas iniciativas implementadas nestas primeiras décadas do século 21 já demonstram impactos positivos na sociedade. É o caso das cotas raciais para estudantes nas universidades públicas. Nenhuma iniciativa do Estado brasileiro reduziu desigualdades e acelerou a mobilidade social como essa política afirmativa. Em contrapartida, nenhuma outra política pública foi tão questionada.
Ainda que as pessoas negras correspondam a cerca de 56% da população brasileira, segundo o IBGE, o PL 1.958 propõe uma reserva de apenas 30% das vagas para esse grupo, das quais, pelo menos, a metade contemplará as mulheres. É fundamental estabelecer esse espaço para as mulheres negras que, apesar de serem o maior contingente populacional do país (cerca de 28%), são o grupo mais precarizado em termos socioeconômicos. Como toda ação afirmativa, a iniciativa proposta é por prazo limitado, tendo sido fixada em 25 anos.
O PL 1.958, ao beneficiar aqueles que foram historicamente negligenciados, procura corrigir desigualdades construídas pelo Estado. Além da população negra, estabelece parâmetros em benefício dos povos originários.
A situação deficitária no trabalho e na educação ampliam as desigualdades raciais no Brasil. Portanto, contamos com nossos legisladores para reduzir essas diferenças. O Estado Brasileiro não deve se eximir da responsabilidade de implementar políticas raciais, como as citadas aqui, as quais foi pródigo em realizar ao longo de toda sua história.
*Helio Santos, doutor em administração pela FEA-USP, presidente do Conselho Deliberativo do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra) e do Conselho da Oxfam Brasil.
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