[RESUMO] Apesar de as raças serem uma fraude científica, argumenta autor, os discursos racistas moldaram a sociedade brasileira. Para combater essa situação, é necessário desenhar políticas de reparação com matizes brasileiros, levando em conta a especificidade da experiência racial de pardos, não raro objetos de constrangimento em bancas de heteroidentificação de concursos públicos e vestibulares.
No final de fevereiro, veio a público o caso de Alison dos Santos Rodrigues, o jovem de 18 anos que perdeu a vaga no curso de medicina da USP por ter sua autodeclaração como pardo negada. A situação, obviamente, não é inédita.
Por exemplo, no concurso do Itamaraty de 2016, quase metade dos candidatos que se identificaram como negros não foram aprovados. Em 2018, 60% dos aprovados pelas cotas da UFF (Universidade Federal Fluminense) foram desclassificados. Agora, 204 dos estudantes que concorriam às 2.067 vagas reservadas às cotas pela USP entraram com recurso. Certamente, há muitas outras situações semelhantes Brasil afora —seja na avaliação de comitês institucionais, seja no tribunal das redes sociais.
Em 1983, com Abdias do Nascimento, foi proposto um primeiro projeto de lei de cotas raciais no Brasil. Porém, foi somente em 2012, por meio da lei 12.711, que as instituições federais de ensino superior ficaram obrigadas a reservar um percentual de cotas raciais em proporção equivalente ao percentual de negros, pardos e indígenas aferido pelo IBGE na unidade federativa onde a universidade está sediada —o que, óbvia e felizmente, induziu um avanço civilizatório em nossa sociedade.
De acordo com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), há basicamente três métodos de classificação racial: a autoidentificação, quando o próprio sujeito identifica o grupo do qual se considera membro; a heteroidentificação, quando outra pessoa identifica o grupo ao qual o sujeito pertence; e a identificação biológica, quando é realizada por meio de análise genética.
Até agosto de 2016, o sistema de cotas estava baseado quase exclusivamente na autodeclaração. Todavia, a ocorrência de um número considerável de fraudes motivou a instituição de uma norma que definiu que os candidatos cotistas de concursos federais deveriam ser submetidos a comissões aptas a avaliar “aspectos fenotípicos do candidato”, que seriam verificados com sua presença. São as chamadas comissões de heteroidentificação.
Na USP, por exemplo, os candidatos passam por uma análise fotográfica realizada por uma banca composta de cinco pessoas. Caso não sejam aprovados por maioria simples, são direcionados para outra banca. Caso ambas as bancas reprovem a imagem, o candidato é convocado para uma oitiva em que tão somente lê um texto em que se identifica como preto ou pardo, sem que possa justificar os motivos de sua autodeclaração.
A análise, portanto, acompanha a norma que determina que, nos concursos públicos, “a comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pela pessoa” —ou seja, faz uso apenas do olhar subjetivo dos examinadores e leva em consideração tão somente o conjunto de características externas e observáveis do candidato, como a cor da pele, o formato do nariz, a textura do cabelo e os lábios.
Foi, portanto, por entender que Alison não tinha as características físicas de uma pessoa parda que a comissão vetou o seu ingresso na universidade, o que, para quem vê fotografias suas, não deixa de causar certo espanto.
Quase no início de “Marrom e Amarelo”, romance de Paulo Scott semifinalista do International Booker Prize, em uma cena tão real quanto surreal, um grupo se reúne em Brasília para definir as normas para a seleção dos candidatos às vagas reservadas para cotistas no ensino público federal. A proposta do governo era a criação de um software apto a “selecionar quem era suficientemente preto, pardo e indígena pra obter o benefício”.
Em certo momento, alguém pergunta se realmente seria factível colocar em prática um programa capaz de padronizar critérios e afastar “a grande inimiga da nossa política de cotas”: a subjetividade. Não só era factível, responde um dos burocratas presentes, como iria “eliminar as situações de constrangimento a que os alunos de fenótipo intermediário, os pardos claros principalmente, são expostos quando comparecem às comissões de verificação das autodeclarações”.
Na sequência, um representante dos estudantes pergunta se não seria melhor retirar os pardos da legislação. A coordenadora da reunião responde que “sim, tinha gente do movimento negro que defendia aquela ideia e mandava mensagens pros congressistas pedindo alterações na legislação pra que só ficassem os pretos e os indígenas na lei, […] mas que uma exclusão como aquela estava fora de cogitação, porque tinha justificativas históricas bem sólidas pra presença dos pretos e dos pardos na política de cotas, justificativas históricas que ela arrolou de forma sucinta, justificativas que ele […], que aceitou estar ali representando os estudantes do país, devia conhecer”.
Na carta em que relata a viagem à Ilha de Vera Cruz, Pero Vaz de Caminha se refere aos indígenas por meio do termo pardo, utilizado duas vezes: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”; “a feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos”. O primeiro ato de heteroidentificação fenotípica do Brasil já estava, portanto, na fundação da nossa relação colonial.
No entanto, o significado do vocábulo não se manteve assim. Ao contrário, oscilou consideravelmente. Com o estabelecimento da escravidão, foi com ele que, em vários registros, se identificaram os cativos de cor mais clara.
Por exemplo, em 1803, na freguesia de São José, em Santa Catarina, foram registrados 255 cativos, dos quais 157 pardos e 92 negros. Já no ano de 1827, dos 285 escravizados registrados, 119 foram identificados como pardos e 166 como negros.
Um pouco mais à frente, em 1870, em Porto Alegre, no inventário do comendador Batista, lê-se: “Deixo liberta a parda Leopoldina. Deixo para servirem meus herdeiros […] as duas pardas Rafaela e Cíntia, Justiniana creoula, Virgilina, Innocencio, Clara e João pardos, e José creoulos. […] O pardo Felisbino, e o creoulo Manoel Maria servirão meus herdeiros vinte annos, e servindo mal servirão trinta annos”.
A categoria foi utilizada já no primeiro Censo brasileiro, em 1872. Em 1890, foi substituída pelo termo mestiço. Desde a fundação do IBGE, em 1936, porém, quase sempre esteve presente e mudou de sentido diversas vezes.
No Censo de 1940, por exemplo, foram estabelecidas três categorias raciais: branco, preto e amarelo. A definição de pardo era negativa, feita por exclusão, já que nela cabiam todos os que não se encaixavam nas três raças puras. Pardo era, então, uma categoria residual.
No Censo de 1950, não constava qualquer definição do termo. Em 1960, se indicava que “para os aborígenes que vivem fora de aldeamento ou postos indígenas, deverá ser assinalado o retângulo de número 27 (pardo), assim como para os que se declararem: mulato, caboclo, cafuzo etc.”.
Em 1970, o Censo não levou em conta questões raciais. Contudo, uma pergunta do questionário da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) interrogava os cidadãos acerca da sua cor de pele. As respostas eram abertas e apareceram termos como branca suja, cor de cuia, pouco clara, sapecada, sarará, burro quando foge, melada, morena parda, café com leite, canela, cobre e queimada de sol.
Em 1980, em uma definição operada em parte por exclusão, em parte por afirmação, em parte por indefinição, se dizia que o retângulo referente aos pardos deveria ser assinalado por pessoas cujas definições fossem diferentes de branca, preta ou amarela, tais como: mulata, mestiça, índia, cabocla, cafuza, mameluca etc. Em 1991, de modo muito semelhante, a categoria era destinada para as categorias diferentes de branca, preta, amarela ou indígena, tais como: mulata, mestiça, cafuza, mameluca etc.
Foi somente no Censo 2000 que a categoria encontrou uma definição oficial exclusivamente afirmativa, ainda que imprecisa: pessoas “que se enquadrassem como parda ou se declarassem mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça”. Em 2010, de forma ainda mais simples, o retângulo deveria ser assinalado pelas pessoas “que se declarassem como pardas”.
Por fim, no Censo 2022, o IBGE instruía que o retângulo deveria ser assinalado por pessoas que se declarem como “pardas ou se identifiquem com a mistura de duas ou mais opções de cor ou raça, incluindo branca, preta ou indígena”. Nesse recenseamento, cerca de 92,1 milhões de pessoas (ou 45,3% da população) se declararam assim, fazendo dos pardos o grupo étnico-racial majoritário do país.
Em 2007, nove personalidades negras participaram do projeto da BBC Brasil Raízes Afro-brasileiras. Por meio de um exame de DNA, se buscava chegar ao percentual das suas origens genéticas. Seu Jorge, por exemplo, computou 12,9% de genes europeus e 85,1% de genes africanos. Djavan descobriu ter 65% de genes africanos, 30,1% europeus e 4,9% ameríndios.
Neguinho da Beija Flor, no resultado menos óbvio de todos, encontrou em seu genoma 67,1% de origem europeia e 31,5% de origem africana. A ex-ginasta Daiane dos Santos tem 40,8% de ancestralidade europeia, 39,7% de ancestralidade africana e 19,6% de ancestralidade indígena. Por fim, Sandra de Sá tem 96,7% de seu DNA composto de origem africana, 2,1% europeia e 1,1% ameríndia.
Ao receber os resultados do exame, Djavan disse se sentir “indubitavelmente negro em tudo”. Afirmou ter sido criado sob a cultura negra e ter “total a coisa do sangue negro, da veia negra na minha vida”. Criado pela mãe, “uma negra linda com a cultura africana no sangue”, o cantor e compositor alagoano não estranhou os 30% de ascendência europeia indicados no exame, pois sabia que seu pai era descendente de holandeses: “Meu pai era louro de olhos azuis”. “Se eu tivesse saído com os olhos azuis, não teria sido nenhuma aberração.”
Seu Jorge disse que tinha “muita esperança de ser 100% negro”. “Se fosse, eu ia pedir uma indenização muito pesada nesse país, mas sou filho dos culpados também.”
Em uma passagem de “O Avesso da Pele”, romance de Jeferson Tenório vencedor do Prêmio Jabuti, Pedro ouve o professor ensinar que as raças não existiam e que “a sua cor era uma invenção cruel e orquestrada pelos europeus”.
O mestre falou sobre “Lineu, um botânico sueco que começou a dividir a humanidade em raças de acordo com a origem e a cor da pele: os europeus, os americanos, os asiáticos, os africanos e os malaios”, sobre “Johann Blumenbach, um zoólogo alemão que seria o primeiro a atribuir cor à humanidade” e “dividiu os seres humanos em brancos, vermelhos, amarelos, marrons e pretos”, sobre “Arthur de Gobineau, o pai do racismo”, o sujeito que aproximou “o conceito de raça do discurso político” e “afirmou que as raças protagonizaram as lutas pelo poder e que, portanto, haveria raças inferiores e raças superiores”.
Pedro ouviu o professor dizer que todas essas eram “teorias que serviam apenas para fortalecer e sustentar o discurso racista da escravidão” e, ao ouvir tudo aquilo, não via a hora de encontrar com a namorada e contar tudo o que havia descoberto. Naquele dia, ele “saiu do cursinho como se tivesse descoberto o segredo da vida”.
Se é verdade que as raças são uma fraude científica, não é menos verdade que essa fraude impôs contornos históricos àquilo que somos, dos quais é imperativo que saibamos nos desfazer. É nossa tarefa civilizatória enfrentar as máculas originadas em nossos processos fundantes, e as políticas afirmativas são um dispositivo fundamental nesse trabalho de desrecalcamento.
Assim que a grita em relação ao episódio de Alison começou, não demoram a aparecer falas que defendiam que a situação explicitava o fato de que as políticas de cotas são um equívoco, o que, definitivamente, o caso não mostra.
Mas o Brasil não é a Suécia nem a Uganda nem o Japão nem os Estados Unidos nem a África do Sul. O Brasil é o Brasil: como já cantaram um mulato e um preto baianos, o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui.
É importante atentarmos àquilo que a interseção das políticas públicas com a categoria vaga, oscilante e operatória do pardo catalisa e condensa. Se é urgente que possamos fazer todas as reparações possíveis, não é menos urgente que se possa corajosa e saudavelmente pensá-las com matizes brasileiros, seja lá o que isso for.
Senão, casos como o de Alison se repetirão incessantemente e, ao lado da mais justa reparação, produzirão constrangimento, trauma e dor, o exato oposto daquilo que temos o dever e o direito de tentar forjar em um país tão belo e violento como o nosso tem sabido ser.
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